SOBRE CICLOS









Decidimos que é justo e digno, abreviarmos a permanência da Paixão, aqui no nosso planeta. Não podemos falar ainda num sofrimento absurdo, porque isto não está acontecendo. E não queremos que aconteça, por isso a decisão.

O quadro de artrose coxo femoral evolui sem dó, o que podia ser feito em termos de controle foi feito, mas agora a impede de se locomover, apesar de bem medicada há mais de 3 anos.

Ela é um cão pesado, de 14 anos, e cada movimento é um grande esforço que a deixa ofegante e como coração disparado de uma maneira absurda. Ela come, bebe, tem o olhar de quem muito viveu e a aparente compreensão de quem sabe que todos nós temos a nossa hora.

Como eu gostaria que ela desse um sinal, que confirmasse ou não, se a nossa decisão está correta!

Tudo foi feito, mas este desgaste das articulações é cruel. Há alguns dias atrás participou de uma festa que oferecemos, no seu ritmo de senhora, mas parecia tão bem! No dia seguinte, ficou muito mais quieta e dali para frente, só levantou após se arrastar e por apenas duas vezes conseguiu se erguer minimamente.

A grande dama provavelmente considera um vexame fazer suas necessidades fisiológicas em qualquer lugar e parece se incomodar quando a erguemos. E por isso se arrasta até o local com o qual está habituada. Deve doer. Qualquer dois metros demora um tempo imenso. Hoje, nem tentou mais se arrastar. Isso gera ferida, infecção urinária, desconforto, dores por manipularmos um cão de mais de 50 kg que já tem o corpo dolorido por causa do problema ortopédico e do quadro inflamatório. Ontem e hoje, a transportamos dentro de uma rede.

O que é a vida? O que é dignidade? O que é justo? Mantermos alguém vivo só porque ainda se alimenta e respira? E com nós humanos? Esta é uma grande reflexão que precisa ser feita continuamente.

Se me fosse dada a oportunidade de escolher, jamais faria esta escolha de ficar viva sem um mínimo de autonomia. Um ser humano, ainda pode ler, ver um filme, se comunicar com clareza, manter algum interesse se tiver condição para tanto, atualizar coisas com quem ama, fazer resgates antes da grande partida. 

Um bicho, com um instinto natural tão forte, que sempre foi muito livre e cheio de vitalidade, ficar confinado a um corpo que não responde e que é irreversível, por causa do quadro e da idade? Não desejo isso para ninguém, nem para um estranho, nem para mim, nem para ninguém que amo, nem para quem não amo mais. Por favor, se puderem, colaborem quando chegar a minha hora.

Já tive que tomar esta decisão há quase 15 anos atrás. Tínhamos uma Newfoundland (sim, adoro o temperamento dos cachorros extra large). O nome dela era Terra. Ela era preta dos olhos ruivos. Era um cão de salvamento de águas frias. Nadava o dia todo, sempre que vínhamos para a praia, e vínhamos sempre. Lá no fundo, só se via a cabeça dela. Nadava horas a fio. O temperamento era quase de um gato. Na dela, ia e vinha de seus mergulhos, tanto faz se frio ou calor, ia na própria companhia. E deixava para se sacudir quando chegava bem perto de alguém. Imaginem o volume de respingos! Essa era a rotina dela.

Super companheira e protetora. Tinha suas amizades aqui na praia, andava solta assim como a Paixão, e certa vez uma senhora disse que todas as tardes ela ia até a casa dela e esperava pelo bolo que fazia. Não podia ver ninguém de chapéu que latia feito uma louca na cara da pessoa. Certa vez, credo, quase enfartou um de susto. Inflamada, mas jamais agressiva.

No final, com problemas renais e dermatológicos ela se deitava perto de uma rede, eu pendurava o soro de todos os dias no gancho e aplicava. Este processo demorava mais de uma hora, foram meses assim e ela se mantinha serena, eu sempre ao lado dela. Até que um dia, ela foi ficando tão fraca que tomamos a difícil decisão, pois ela não se levantava mais, assim como a Paixão. A diferença é que o estado geral dela não era bom, ao contrário da Paixão, que é velhinha, mas por incrível que pareça não debilitada, apesar de coisinhas que apareceram estes dias.

E me pergunto: se ao sabermos que um quadro é irreversível, porque esperar que tudo fique tão ruim? Para termos certeza de que tomamos a única atitude cabível? É uma responsabilidade que arrepia, mas o bom senso, o respeito e o desejo de bem estar devem ser o foco. A dúvida, o medo, a culpa, não são bons conselheiros.

Na noite em que a colocamos a Terra para dormir definitivamente, tive um sonho. Ela apareceu completamente saudável, vigorosa, pegando o caminho de quem está saindo daqui da Vila. É uma subida. Ela subia e olhava para trás, para mim. A mensagem que ficou era de que estava tudo bem, que agora ela poderia se libertar do corpo físico que a fazia sofrer e ser livre como sua alma.

Na sequencia sonhei com uma índia muito velha. Ela segurava uma cobra, que ia trocando de pele. A índia me olhava profundamente e novamente a mensagem de que estava tudo bem, a decisão era correta. Estes sonhos de alguma maneira me acalmaram.

Quando a Terra morreu, imediatamente quis outro. Mas a raça é rara no Brasil, ainda mais naquela época. Escolhemos então um Golden Retriver. No Budismo, falam que uma alma leva 49 dias para reencarnar. Então esperei os 49 dias pela Paixão, feito preso fazendo cruzinhas na parede, esperando pelo dia da soltura.

Tinha três ninhadas em vista. Expliquei para os criadores que eu era astróloga e pedi que anotassem dia e hora do nascimento dos filhotes. Quando uma ninhada nasceu e montei o mapa, era tudo o que eu queria. Nem que encomendasse. Sol em Peixes, Lua em Sagitário e Asc. Escorpião. Todos os filhotes nasceram num intervalo de tempo x que manteve o Ascendente Peixes.

E lá fomos nós escolher nosso amor! Chegando lá, vimos um macho que parecia um urso, cor creme. Apaixonei embora não quisesse um macho pela necessidade que têm de marcar território e porque aqui na Vila havia brigas horríveis entre eles. Nos sentamos no chão e uma criaturinha minúscula, fêmea e ruiva atravessou a sala e desamarrou o tênis da Clara, minha filha. Pronto, amor à primeira vista, ela nos escolheu.

Nesses 14 anos, ela foi completamente saudável, companheira, alegre, adequada, sensível. Super nadadora, mas ao contrário da Terra, preferia sempre a nossa companhia. Tão delicada com bebês, parece que todo aquele tamanho, quando era preciso delicadeza, permitiria que ela andasse entre coisas frágeis sem quebrar nada.

Companheira no momento dos meus atendimentos, em casa não tinha campainha, a porta ficava sempre aberta, e era ela quem avisava que a pessoa esperada havia chegado. Muitos de vocês que estão lendo devem se lembrar disso! Quando era alguém que ela já conhecia, só fazia festa, sem avisar nada. 

Eu sei que a vida é ciclo. Meu ofício é esse, lidar com os ciclos e com o tempo. Trabalho com a fé, com a esperança, com a transformação, com términos, com novos inícios. Minha razão sabe que está tudo bem, que está tudo em paz. Mas meu coração já está louco de saudades e dói demais. Em algum breve momento, eles vão dar as mãos, minha razão e meu coração. 

Mas enquanto isso, cadê o ar para respirar profundamente e dizer para mim mesma: - “Calma, vai passar, isso é VIDA! A Paixão viveu maravilhosamente, recebendo e oferecendo muito amor, e as coisas um dia chegam ao fim”.

Mas a razão é insuficiente para convencer o coração.

Então, até um dia, minha pisciana mais que amorosa, minha linda, meu amor. As almas dos humanos e de seus animais estão sempre alinhadas e nos reencontraremos. Enquanto isso, estaremos separadas apenas pela condição física. Nossos corações e nossas almas estão eternamente bordados um no outro.

E la nave va...

PS1 - Os animais nos ensinam tudo o tempo todo. Um destes ensinamentos, talvez seja nos prepararmos para as ausências. A vida deles é tão breve, que acaba se tornando um rascunho do que viveremos inevitávelmente outras vezes. E apesar da dor da perda e de viverem tão pouco, estar com eles é um grande privilégio e uma grande honra.

PS2- Estes escritos são de ontem, qdo. a decisão foi tomada. Há algumas horas, ela se foi. Acarinhada, aconchegada, ouvindo palavras de recomendação para quando chegasse perto de São Francisco. Não sei porque escrevi tudo isso. Ou melhor, a escrita me lava, me renova, faz fluir. Por que postei? Porque talvez sirva para outras pessoas. Sempre é bom se sentir acompanhada na jornada.

Una sola vez escribiste una frase, con tiza negra:
A mi también me duele.
— J. Cortázar


Picinguaba, 11 de março 2014


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